Revista A Estrela
Uma das raras publicações sobre o universo carcerário, é a única revista produzida inteiramente por pessoas privadas de liberdade
Há 10 anos, o Brasil ocupa a terceira posição entre os países que mais prendem no mundo. São, aproximadamente, 880 mil homens e mulheres privados de liberdade. À frente, apenas, Estados Unidos, com 1,7 milhão de presos; e China, com 1,6 milhão, segundo o World Prison Brief.
Indo além dos números, quem são essas pessoas? Quais são as suas histórias, angústias, o que sentem? Essas foram algumas das questões que motivaram a criação da revista “A Estrela”, uma das raras publicações dedicadas ao universo carcerário – a única inteiramente produzida por pessoas privadas de liberdade, com relatos em primeira pessoa, séries autorais de fotografia, fotojornalismo, crônicas e poemas.

Participantes da revista A Estrela durante oficina de fotografia.
As cinco edições da revista (que circulou entre 2014 e 2017) foram resultado de aulas ministradas pela jornalista Natália Martino e pelo fotógrafo Leo Drumond, dentro de centros de detenção. Ao longo de uma semana, eles praticamente se mudavam para as unidades prisionais, em alguns casos até dormiam lá.
“A Estrela nasce de um jeito de ensinar da Nitro, que é muito prático, como precisa ser na fotografia e no audiovisual. As técnicas são ensinadas, mas como ferramentas para contar histórias – e esse era o objetivo, que os detentos contassem as suas histórias. A partir dessa ideia, realizamos aulas de comunicação, jornalismo, além da prática fotográfica, com a câmera sempre na mão. Desde o começo fizemos questão que os equipamentos ficassem com eles, para que se familiarizem”, conta Drumond.
Uma premissa básica do projeto, ele lembra, é que gerasse algo tátil, acessível, para que os presos vissem e mandassem para os parentes. “Por isso a revista foi tão bem aceita, ainda mais que há uma cultura forte de leitura e escrita nos presídios, a comunicação por cartas.”
Mosaico de desafios
A primeira das batalhas foi conseguir entrar com as câmeras nos centros de detenção e deixar os equipamentos com eles, para que se soltassem e também tivessem a liberdade de escolher o que contar. O que incluía denúncias, mas também o outro lado, como questões pessoais ou da rotina – embora tudo que seja produzido no sistema prisional esteja sob vigilância ou seja submetido a censura (tinham temas que os detentos sabiam que não podiam falar).

Cena da oficina de comunicação da revista A Estrela.
Para Natália Martino, cada edição da revista teve desafios e aprendizados únicos. “Foram cinco publicações feitas em unidades prisionais com características muito distintas, o que nos obrigava a adaptar metodologias de trabalho o tempo todo. Em algumas, conseguimos circular mais, o que ampliou as possibilidades de expressão. Por outro lado, foi justamente nessas instituições que enfrentamos censura nas pautas. Em outras, as limitações de trabalho eram inúmeras, sendo que uma das penitenciárias fomos relegados a produzir a revista quase inteira sem sair de uma única cela.”
Tiveram outras diferenças, em especial entre as unidades femininas e as masculinas, conta Martino. “O nível de controle moral nas primeiras, vindo de autoridades administrativas que se confundem com autoridades religiosas, é digno de documentos históricos do início do século passado, quando as primeiras penitenciárias femininas eram inauguradas sob a gestão de irmandades religiosas. Todos os desconfortos gerados no enfrentamento, ora direto ora sutil, dessas realidades fazem parte de uma história de amadurecimento do projeto. E, mais do que isso, revelam o mosaico de desafios que precisam ser enfrentados pela política penal para se tornar digna do século XXI.”
Divisor de águas
Em 2015 a psicóloga Danila Fazzion, então gerente geral da Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), em São João del Rei (MG), conheceu o projeto por meio da unidade de Itaúna, que tinha realizado a revista. “Sempre busquei projetos educativos, terapêuticos, que pudessem mudar o cenário e humanizar contexto prisional. Mas a revista ‘A Estrela’ foi muito mais”.

Alunos privados de liberdade entrevistam juiz da vara criminal.
Fazzion conta que, apesar dos desafios, o projeto foi um divisor de águas para a Apac, devido, principalmente, à confiança depositada nos recuperandos. “Foram muitas trocas, aprendizados, uma relação de confiança. Eles ficavam com equipamentos muito caros. Esse gesto, para pessoas que não acreditam e si mesmas, muda por completo a sua autoimagem, a autoconfiança. Foi um verdadeiro resgate na autoestima.”
Pensar que pessoas submetidas a tantas restrições, a censura, produziram um canal de comunicação como a revista “A Estrela” é extraordinário, lembra Leo Drumond. “Eles faziam entrevistas com autoridades, muitas delas juízes. Estar naquele ambiente com pessoas que são odiadas pela sociedade e entender que a dinâmica educativa também funciona nesses espaços é fantástico. Sem dúvidas, foi a experiência educacional de mais impacto da minha vida. ”